29 setembro 2008

a crise do capitalismo neoliberal revisitada

André Freire
Público, 29 de Setembro de 2008
bbb
As tomadas de posição de alguns dos mais ardentes defensores portugueses do neoliberalismo não devem ficar sem resposta. Revisito hoje um tema que já abordei aqui: Crise do capitalismo neoliberal: diagnóstico (21/4/08) e Crise do capitalismo neoliberal: alternativas (26/5/08). Primeiro, por causa do brutal agudizar da crise no sistema financeiro dos EUA e das maciças intervenções públicas para evitar o seu colapso. Segundo, porque creio que as tomadas de posição de alguns dos mais ardentes defensores portugueses do neoliberalismo não devem ficar sem resposta.
Um conjunto de tais posições foi assumida por Pacheco Pereira (PP) neste jornal (20/9/08), "O ataque ao 'neoliberalismo' e o 'bacalhau a pataco'": "A 'crise' não é o sinal da crise do liberalismo, mas sim do seu normal funcionamento (...), das regras do jogo dessa mão que Adam Smith dizia ser 'invisível'." Porém, esta não é uma crise qualquer: Alan Greenspan classificou-a como a "mais grave desde a Grande Depressão" e a dúvida que se levanta é se, sem as maciças intervenções públicas a que temos assistido, a crise não seria tão ou mais profunda do que a de 1929. Ou seja, se deixássemos funcionar apenas a "mão invisível" do mercado, provavelmente estaríamos já na iminência de um colapso semelhante ao de 1929 (Tony Jenkins, Expresso, 20/9/08). E, embora com a particularidade de se situar bem no centro do capitalismo mundial, esta crise segue-se a outras também violentas e com devastadores efeitos socioeconómicos: México, 1994-1995; Este e Sudeste Asiático, 1997; Rússia, 1998; Argentina, 2001-2002.
Mas P.P. também afirma que não sabe o que é o neoliberalismo e que é falso que este alguma vez tenha sido hegemónico: "O que para mim é estranho é que nunca vi essa coisa do liberalismo, agora apodado sempre de 'neo' (...) (para) lhe dar os tons arrivistas da moda, ser o vencedor, o ganhador, o hegemónico, que os seus adversários dizem que foi ou que ainda é. Nunca vi o liberalismo, como ideia e como prática, ser dominante (...).
"Há dezenas, provavelmente até centenas, de prestigiados livros académicos sobre o neoliberalismo e a sua hegemonia na cena mundial. O liberalismo é um fenómeno multidimensional. Na esfera política, é hoje um património partilhado por todos os democratas, da direita à esquerda: a ideia do governo representativo, responsável perante um parlamento, e fiscalizado por vários órgãos através do sistema de checks and balances. Na arena sociocultural, o liberalismo está até mais frequentemente associado à esquerda (liberalização do aborto, casamento homossexual, etc.). Na esfera económica, o liberalismo costumava estar mais associado à direita: a crença no mercado como a forma mais eficiente de alocação de recursos e o cepticismo quanto ao papel do Estado. Com a "Grande Depressão" verificou-se à exaustão que o mercado só por si é incapaz de se auto-regular e que, por isso mesmo, é necessária e benéfica a acção do Estado para corrigir as ineficiências do mercado e para a provisão de certos bens públicos essenciais (saúde, educação, segurança social, etc.). Seguiu-se a era do "capitalismo regulado", do New Deal, do "consenso keynesiano": foram três décadas de enorme prosperidade. Com o declínio das taxas de lucro, agravado pelos choques petrolíferos (e a inflação gerada por essa via), veio a crise do "capitalismo regulado" e aquilo a que os especialistas convencionaram chamar a fase do "capitalismo desregulado" ou "neoliberal". Repescaram-se as ideias fortes do liberalismo económico e atacaram-se as ideias e políticas centrais da era keynesiana. Os primeiros experimentos renegaram por completo o liberalismo político: aplicando as doutrinas económicas da escola de Chicago, o tiro de partida foi dado no Chile de Pinochet (1973) e na Argentina de Videla (1976), ambos generais golpistas que derrubaram regimes democráticos. Seguiram-se os governos de Thatcher, em 1979, e de Reagan, 1980. O novo consenso neoliberal seria consagrado no chamado "consenso de Washington" e imposto a nível mundial pelas várias organizações dominadas, sobretudo, pelos americanos e ingleses (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, OCDE), nomeadamente através dos programas de austeridade e de liberalização dos mercados (de capitais, etc.) que os países em dificuldades eram obrigados a cumprir.
Além das várias crises já relatadas, cerca de 30 anos passados sobre o início da era do capitalismo neoliberal, há hoje evidência de que, excepto nalgumas regiões da Ásia (onde o liberalismo económico foi sempre bastante mitigado pela acção do Estado), as taxas de crescimento económico nas várias regiões do globo foram bastante superiores na era do "capitalismo regulado" do que na do "capitalismo neoliberal" (ver o meu artigo de 21/4/08).
Numa coisa penso que os neoliberais portugueses têm razão: tudo pode ainda ser pior (Rui Ramos, Este mundo era o vosso, PÚBLICO, 17/9/08). É também a tese de Naomi Klein (The Shock Doctrine) para explicar a combinação entre regimes ditatoriais e neoliberalismo. Aliás, o deslumbramento dos neoliberais com o crescimento económico da ditadura chinesa faz temer o pior. Para nos libertarmos da canga do neoliberalismo, é necessário que, quer a social-democracia europeia (e os democratas americanos), quer a democracia-cristã, antigos pilares políticos do keynesianismo e do Estado Social, quebrem o consenso neoliberal. Como sublinhou Mário Soares (DN, 23/9/08), a esquerda europeia precisa de apresentar alternativas. Algumas ideias do altermundialismo (e não só) podem ser úteis: a Taxa Tobin, o combate aos paraísos fiscais, o relançamento do keynesianismo à escala supranacional (nomeadamente europeia) e a utilização das instâncias supranacionais (nomeadamente a UE) para regular a globalização (ver o meu artigo de 26/5/08). Mas há também que encontrar aliados à direita: Sarkozy ("é o fim do capitalismo laissez-faire" e "é o fim do mercado todo-poderoso") pode ser um deles.

luz sobre lisboa

Rui Tavares
Público, 29 de Setembro de 2008

Segundo o UrbanAudit, serviço da UE, Lisboa é a cidade média/grande mais desvitalizada de toda a Europa a 27. Não há notícia, em toda essa Europa, de um parque habitacional tão fragmentado — excepto em pequenas cidades romenas que perderam a indústria mineira. Lisboa perdeu, em trinta anos, trinta por cento da população. Para os leitores do resto do país que podem estar fartos de ouvir falar da capital, pensem nisto como um caso extremo dos problemas que podem afligir também as vossas cidades.
Tal como uma cidade saudável pode ser o motor do renascimento de um país ou região, uma cidade encalhada é um obstáculo a mais para a sua recuperação. A criação de uma política urbana, sistemática e bem articulada, deveria estar na prioridade da agenda nacional. Mas a cultura política dominante tem sido exactamente a oposta: a do casuismo como forma de acção. Um caso recente é o emblema do que acabo de escrever.
A notícia de que a Câmara Municipal de Lisboa andou, durante sucessivas vereações, a distribuir casas de forma arbitrária, ao serviço da cunha e do episódio individual, é evidentemente um escândalo político. É até mais do que isso: o símbolo do tempo desperdiçado e dos recursos mal empregues que poderiam ter sido usados para benefício da cidade.
António Costa tem de agir rapidamente nos dois planos.
Em primeiro lugar, interromper a prática não basta. Se for verdade que uma vereadora beneficiou dela, mesmo que em tempos de outro presidente, a própria vereadora tem que vir dar explicações a público.
Se as explicações não forem satisfatórias, terá de demitir-se. É tão simples quanto isso. Sem essa acção nunca a câmara se poderá credibilizar para o passo que se segue.
A utilização do parque habitacional da câmara pode — e deve — ser uma ferramenta ao serviço da revitalização da cidade. Mas esta é uma política pública por excelência: com património público, para benefício último do público, e de maneira a que tudo se passe em público.
Para dar um exemplo: sim, é verdade que os artistas são muitas vezes o primeiro motor do renascimento de um bairro. Não é raro — e não é mal pensado — que os poderes municipais, por esse mundo fora, se empenhem em cativar as classes criativas para certos pontos da cidade. Mas a única forma correcta de o fazer é através de concursos públicos para residências artísticas por prazo limitado a troco de projectos específicos. Exemplo: vinte ou trinta jovens artistas por ano, escolhidos pelos professores da Faculdade de Belas-Artes (de preferência da Universidade do Porto, para não haver confusões).
Também o caso do artista ou escritor de mérito a quem a cidade decide retribuir pela sua obra não me choca especialmente — desde que seja excepcional, se passe à luz do dia e traga benefícios para os munícipes como a utilização de uma biblioteca ou a constituição de uma fundação — e seja pensado como homenagem e não como favor.
A atribuição de casas a funcionários da câmara, jornalistas e políticos não é admissível — nunca, jamais, em tempo algum — e nada a pode justificar. Só nos permite saber que afinal havia recursos para uma política interessante que foram desviados e desperdiçados.
Tendo em conta o grave panorama urbano de Lisboa, é um duplo escândalo, tornado ainda mais deprimente por uma cultura municipal “histórica” que parece achar que tudo isto é normal. Nesse caso, é essa cultura que terá de ser mudada de alto a baixo, com carácter de urgência e sob o olhar de todos. A máxima a seguir é: o melhor desinfectante é a luz do Sol.

18 setembro 2008

rendas congeladas e casas congeladas

Rui Tavares
Público, 17 de Setembro de 2008

Na última crónica, vimos que no imobiliário não há apenas um mas dois mercados. O primeiro é o de investimento em imobiliário; o segundo é o de casas para habitar. O mercado do investimento em imobiliário - inteiramente legítimo, diga-se - não se comporta de forma muito diferente de, por exemplo, o mercado de investimento em arte. Por muito importante que ele seja, o segundo mercado - o de casas para habitar - é mais importante. É de primeira necessidade para as pessoas, que precisam de casa para viver. E é de primeira necessidade para as cidades que, quando se esvaziam, se degradam e apodrecem por dentro.
Se caminharmos vinte minutos pelo centro da cidade, veremos que os prédios estão vazios, e que isto é um risco que não podemos correr. A semana passada ardeu mais um prédio devoluto na Rua da Madalena.
Recentemente apareceu o argumento de que as pessoas não querem viver na Baixa porque as casas não têm elevador nem lugar de estacionamento. Isto não faz sentido.
Amesterdão ou Paris estão cheias de casas sem elevador que são avidamente ocupadas. As casas aqui na Graça não têm elevador e vendem-se ou alugam–se rapidamente. Há muita gente que moraria na Baixa, mesmo sem elevador ou lugar para estacionar: estudantes, jovens casais, profissionais independentes, classe média urbana e educada. Não o fazem porque, apesar do mercado de casas para habitar ser mais importante, o mercado de investimento imobiliário é que manda nos preços.
Há várias maneiras de lidar com este problema. Uma delas - a criação de um segmento de rendas a custo controlado - já foi defendida nesta coluna, e hoje saltarei adiante. A câmara municipal pode ajudar colocando parte do seu património no mercado, em especial alugando–o. E é consensual que a burocracia municipal tem atrapalhado onde deveria ajudar na recuperação dos edifícios.
Porém: há alguém que tem em primeiro lugar responsabilidade sobre a propriedade. Esse alguém é o proprietário. Se os prédios vazios são um desperdício e um risco para todos, devem ser taxados por isso. Ter casas vazias por anos a fio deve ser taxado como o luxo que é (a lei permite duplicar o IMI para prédios devolutos; em Lisboa o PSD chumbou essa proposta na assembleia municipal).
Ah, mas os proprietários estão descapitalizados! Mais uma vez, estamos mais a falar de um mito do que de uma realidade. Segundo João Seixas, no seu estudo de 2004 sobre Lisboa (Estudos Urbanos Lisboa, vol. 4), dois terços das casas vazias do concelho de Lisboa estavam em boas ou óptimas condições de ocupação. Os proprietários têm pois capital, sob forma de imobiliário. O que se passa é que deixá-lo vazio sai mais barato do que deveria. E pior: deixá-lo cair parece não ser penalizado de forma dissuasora.
Se os prédios vazios são um desperdício, os prédios degradados são um verdadeiro delito contra a cidade.
A descapitalização não é desculpa - nunca é desculpa - para mais ninguém. Se eu for apanhado pela Brigada de Trânsito não posso dizer-lhes que estou descapitalizado e não pude fazer a inspecção periódica ou pagar o seguro obrigatório do meu carro. Se o meu rebanho destruir a seara do vizinho, quem se interessa se eu não pude pagar uma cerca? Os seus proprietários devem pagar pelas externalidades negativas dos prédios ao abandono, sem desculpas. Independentemente da burocracia municipal, das rendas congeladas, ou de qualquer outra justificação, a manutenção do edifício é obrigação moral e legal do proprietário. Está demasiado barato deixar prédios vazios a cair ou a arder nas nossas cidades. E está na hora de falar menos em rendas congeladas e olhar mais para as casas congeladas.

16 setembro 2008

os dois mercados

Rui Tavares
Público, 15 de Setembro de 2008

A aliança que governa Lisboa ampliou-se para incluir Helena Roseta. Ao assumir a estratégia para a habitação, ela não é só uma vereadora qualquer; tornou-se num elemento crucial do poder na cidade, parte do problema e (esperemos) parte da solução. É bom ter alguém com um perfil forte e responsabilidades políticas na área da habitação - provavelmente “o” problema que mais precisa de ser repensado agora.
Durante muitos anos o congelamento das rendas tem sido apresentado como um dos grandes culpados pelo esvaziamento do centro, e pela correspondente degradação dos prédios. É uma explicação plausível, e que aceito em grande parte.
Mas as rendas baixas já não podem ser explicação para todos os casos.
Há hoje, numa cidade como Lisboa, centenas de prédios vazios que não são vendidos nem alugados. E há alguns bons milhares de prédios com apenas um ou dois inquilinos e quatro, seis ou oito apartamentos por alugar ou vender. Assinalando que estou apenas a falar destes casos, a “canga” das rendas congeladas já não permite entender por que não aluga o senhorio os apartamentos que estão livres, ou por que não os vende.
Uma explicação adicional às “rendas congeladas” costuma ser a da burocracia autárquica. Ela explicará alguns casos, mas não explica todos. Como vimos no caso do prédio que ardeu na Avenida da Liberdade e que era propriedade de um grande banco, por vezes é o próprio proprietário que não tem pressa para fazer nada ao imóvel, apesar de ter os meios para o fazer.
Uma terceira explicação para o mistério só poderia ser esta: não há procura. Se levarmos os dogmas capitalistas a sério, teremos de admitir que ninguém quer morar no Rossio, e que só por isso o Rossio perdeu recentemente o seu único morador. Esta explicação é absurda por duas razões. A primeira é empírica: conhecemos muita gente que gostaria de morar no Rossio. A segunda é teórica: é suposto a procura e a oferta equilibrarem-se. Se pouca gente quer morar no Rossio, os proprietários baixariam os preços até encontrarem quem quisesse. Mas isto não acontece.
Poderíamos dizer que o mercado não está a funcionar, mas não irei por aí. O mercado funciona sempre. E neste momento está a funcionar - mas para manter o Rossio sem habitantes.
A resposta é que, para ser rigoroso, não há um, mas sim dois mercados. Há o mercado de investimento imobiliário, que serve para isso mesmo: investir em imobiliário. E há o mercado de casas para viver, no qual o objectivo é precisamente o de comprar ou alugar uma casa e depois conseguir viver - ou seja: também poder comprar comida e essas outras coisas depois de pagar a prestação da casa.
Estes dois mercados não são coincidentes. Caso fossem, o investimento imobiliário encontrar–se-ia a meio do caminho com a procura de casas para viver. A oferta ajustar-se-ia à procura. Só que apesar de falarmos do mesmo objecto - uma casa - aquilo que nos oferecem e aquilo que procuramos nesse objecto não é forçosamente a mesma coisa.
O mercado está, pois, a funcionar. Mas não da maneira que nós gostaríamos. A questão política é saber se é legítimo, para a comunidade, preferir o mercado das casas para viver ao mercado que deixa as casas vazias e a cidade degradada e oca. A questão económica é saber que tipo de intervenção política seria sustentável. A questão política não precisa da questão económica para provar a sua legitimidade - mas precisa dela para encontrar uma boa resposta. A próxima crónica será ainda sobre este tema.

02 setembro 2008

o que é o "novo progressismo"

Rui Tavares
Público, 1 de Setembro 2008

Vocês decidam-se, pá. Ou Obama é um político de plástico, ou Obama é demasiado radical. Ou Obama não quer saber da Europa, como diz Vasco Pulido Valente, ou Obama cometeu um crime de lesa-pátria ao discursar para 200 mil pessoas em Berlim, como diz a direita americana.
Ou Obama é um risco demasiado grande num mundo perigoso, ou não há risco, porque nenhum presidente consegue mudar a política internacional dos EUA (e como se explica Bush?). Ou Obama é um intervencionista ou um isolacionista (nenhuma das duas: em política internacional parece ser mais institucionalista e multilateralista do que é comum nos EUA). Ou o pessoal vota em Obama só por ser negro, ou por ele ser um intelectual com ideias a mais. Ou a esquerda europeia é cega no seu antiamericanismo, ou a esquerda europeia está cega na sua paixão por Obama. Não pode ser tudo verdade ao mesmo tempo.
Mas provavelmente a explicação para as contradições está nisto mesmo: a preocupação não é com o que está a acontecer, mas em reagir à reacção da esquerda europeia. É uma lástima, porque o que está a acontecer é mais interessante.
Obama é mais do que um candidato histórico por ser negro. O que ele fez na semana passada foi propor a reinvenção de uma tradição política: a do progressismo americano.
Mesmo neste curto espaço, sou forçado a precisar um pouco a terminologia. Na Europa, "progressista" significou em tempos um comunista que não queria dizer que era comunista. Não é disso que estamos a falar. No panorama americano o "progressivism" é uma tradição que tenta superar a polarização habitual em duas famílias: conservadores mais à direita e liberais mais à esquerda, com claríssimo ascendente dos primeiros na última geração.
O domínio ideológico conservador, que vem dos tempos de Reagan, trouxe consigo o triunfo da "triclcle-down economics": cuidar do topo da pirâmide onde estão as grandes empresas e os ricos e esperar que os seus investimentos acabem por "pingar" para quem está em baixo. Só que em tempos de crise não pinga nada, e a ideologia dominante diz que tudo o que o governo fizer para ajudar quem está em baixo é pernicioso.
É o momento para virar esta narrativa do avesso.
Nenhum candidato presidencial democrata da última geração foi tão claro, como Obama na semana passada, ao denunciar a "sociedade de proprietários" (ownership society) como não passando da sociedade do "desenrasca-te a ti próprio" e ao defender que uma sociedade com justiça social resiste melhor às crises e as supera mais depressa.
Coisa curiosa: o trecho onde ele expôs o seu ataque veio de um discurso feito há mais de três anos numa universidade americana, muito antes de ser candidato. Não o digo para lhe elogiar a coerência, mas para notar uma coisa muito mais importante. Ele acredita, com razão, que este discurso pode ganhar.
O entusiasmo da esquerda europeia explica-se então facilmente. Há muito tempo que ela vê os buracos na narrativa liberal-financeira dominante; mas não tem nada para propor em troca (a prestação de Ségolène Royal em França foi uma espécie de apogeu do vácuo). Pessoalmente, nem tudo me agrada no "novo progressismo" de Obama, a começar pelo seu genuíno paternalismo; digo também, desde a primeira crónica do ano, que nenhuma das suas propostas se concretizará sem forte oposição dos beneficiários da política dominante.
Mas confesso: é uma beleza ver surgir um discurso claro à esquerda, com o qual teremos muito a aprender na Europa. E uma beleza maior ainda ver que os seus adversários só lhe sabem reagir, mas não lhe conseguem dar resposta.