06 agosto 2013

Riem-se na sua cara

Rui Tavares
Público, 5 de Agosto de 2013

Escrevo estas linhas numa aldeia ribatejana de fim de estrada, onde só se escuta a camioneta da carreira, até ao dia em que acabarem com isso também. E, no entanto, até aqui os ouço. Riem-se na minha cara. Riem-se na cara de todos os intelectuais, bem intencionados, politizados desde a nascença, que passaram a vida a dizer aos amigos: «Sabes o que era bom, para mudar o mundo?» - «Abrir uma editora», «abrir um jornal», «abrir uma universidade», «criar um partido», «fundar um centro de estudos».

Riem-se, porque eles um dia disseram: «Sabem o que é preciso, para fazer política a sério?» - «Abrir um banco». E a partir daí foi só rir.

Riram-se na sua cara quando fundaram o BPN, como uma espécie de Herdade da Coelha das instituições financeiras, um lugar confortável para quem tinha estado no PSD e no governo do Professor Cavaco.

Riram-se quando concederam a filhos e esposas empréstimos de milhões que não tinham intenções de jamais reembolsar. Riram-se quando ex-ministros criaram empresas fictícias para comprar acções do próprio banco.

Riram-se, talvez de nervoso muidinho, quando as coisas começaram a correr mal. Há um mail em que procuram apressadamente novos membros do Conselho: «Este, que é do PS», «aquele, que é amigo do primeiro-ministro». Os tempos tinham mudado as caras em São Bento, era preciso acautelar as coisas.

Riram-se quando o banco foi à falência. De alívio. Foi você que pagou a conta e eles, bem, desde que não fossem apanhados a matar alguma velhota, tudo haveria de correr bem.

Riem-se na cara de todos os adeptos que passam três horas em frente à TV a discutir um penálti mal marcado. Afinal, um lucro de 150% em ações compradas com dinheiro do vendedor e vendidas outra vez ao mesmo é que é «limpinho, limpinho, limpinho». Mesmo quando se é presidente do Conselho Superior, como o ministro Rui Machete, não há nada para estranhar. Você, quando acha 25 euros na algibeira onde pensava ter só 10 euros, estranha? E se forem 25 milhões? E se tiver mais meia dúzia de conselhos para presidir?

Eles riem-se na cara da classe média, da classe baixa e até da classe alta. Eles não têm medo da luta de classes, porque eles acham isso fora de qualquer cogitação: eles estão para lá de qualquer classe. No mundo deles, há regras especiais que são só para eles. Por isso riem-se de cada pedido de demissão: sabem que a oposição nunca se vai entender para mais do que pedir a demissão.

Riem-se na sua cara, quem quer que você seja. Riem na cara da aposentada de Bragança, do funcionário público de Coimbra, do rapper da Brandoa, do comerciante falido do Porto, do desempregado e do emigrado e do pós-graduado que procura um bilhete low-cost para vir a casa. Riem-se na cara dos que tiveram que mudar de país por não mudar o país. Riem-se na cara dos que mudaram para o outro país, o país do Facebook, o país dos manifestos e petições, o país do «eles são todos iguais», o país da indignação na expectativa.

Riem-se na cara do intelectual bem intencionado que nem sabe sentir raiva direito e que, por causa dos livros de História, tem prurido em escrever «eles» e «nós».

Afinal, eles sempre souberam que havia eles e nós.

05 agosto 2013

Brincar aos ricos

Filipe Luís
Visão, 1 de Agosto de 2013

Tornou-se viral, nas redes sociais, a reportagem publicada na revista do Expresso, sobre o «refúgio das elites» da Comporta. Viral, sobretudo, a crítica aos critérios editoriais do semanário e a descompostura colectiva à frase de uma das entrevistadas, Cristina Espírito Santo, onde, por se viver ali «em estado mais puro», estar na Comporta seria como «brincar aos pobrezinhos». Sobre os critérios jornalísticos, nada a dizer. É uma reportagem interessante, publicada na época certa do ano, que nos dá uma perspectiva de um mundo pouco conhecido do comum dos portugueses, e que nos diz que, apesar da crise, há quem continue a safar-se - o que é notícia de interesse público. Condenar a reportagem é matar o mensageiro. Uma estupidez, portanto.

Mas debrucemo-nos sobre a polémica frase da entrevistada. Para já, e ao contrário do que defenderam os talibans do facebook, ela não define o carácter da sua autora nem nos indica que ela se move por alguma espécie de intenção malévola de amesquinhar os portugueses, num tempo em que todos parecem caminhar para um «estado mis puro» de pobreza. Miguel Sousa Tavares assinalou que o facebook é a maior ameaça do século XXI. Ao contrário do que parece, é, pelo menos, a maior ameaça à liberdade de expressão... Assim, as críticas fáceis e a indignação piedosa rapidamente queimaram Cristina Espírito Santo na santa fogueira do face. É caso para dizer: pobrezinha!

Não, aquela frase não é suficientemente nobre para suscitar a indignação de ninguém. Ela deve, antes, ser analisada cientificamente. É matéria para a antropologia social: em 2013, ano pior da nossa vida colectiva recente, ainda existe gente que continua a ter da pobreza uma imagem romântica, que o salazarismo consagrou ideologicamente e cinco anos de empobrecimento súbito recente não abalaram. «Pobre mas remendado», eis como Salazar via o país. E eis como Cristina Espírito Santo vê o «estado mais puro»: «Pintei-a [à casa], renovei-a. Fiz uma boa casa de banho. Mas deixei a estrutura de origem, com colmo em determinadas zonas. Muito rústica. (...) É como brincar aos pobrezinhos».

Os que retêm da pobreza a rusticidade e o pitoresco nunca viram um pobre. Não entraram numa mansarda sem água corrente, não mandaram os filhos para a escola sem uma refeição, não passam frio por falta de dinheiro para o aquecimento, não morreram de doença por não poderem pagar uma taxa moderadora. Não conhecem o estigma do desemprego, nunca leram, viram ou escutaram a sociedade à sua volta. É por isso que a frase é, do ponto de vista do caso de estudo, tão interessante: ainda há gente assim! E essa gente merece ser, não criticada, mas estudada, como se estuda uma avis rara.

A política europeia de resgate à banca e apoio aos banqueiros, especuladores e grandes grupos económicos, a circulação e fuga de capitais, a evasão fiscal e a existência de offshores em muito contribuem para que os nossos pobrezinhos não possuam moradias rústicas, com o charme de algumas coberturas de colmo e «uma boa casa de banho». E também contribuem para que haja quem ignore essa realidade.

Nada nos diz, portanto, que Cristina Espírito Santo seja uma pessoa má ou insensível. A sua frase, que tantos condenaram apressadamente, apenas nos diz que se trata de uma pobre de espírito - a brincar aos ricos.