12 novembro 2013

O Estado paralelo

Pedro Adão e Silva
Expresso, 2 de Novembro de 2013

Se fizermos o exercício exigente de procurar racionalidade na ação deste Governo, talvez seja possível identificar dois momentos no processo de "reforma" do Estado. Num primeiro momento, o objetivo essencial era deslegitimar a ação do Estado, tornando-o crescentemente ineficaz; num segundo, com um contexto mais propício ao seu desmantelamento, ficaria aberta a porta à criação de novos mercados - na saúde, educação e segurança social.
Num primeiro momento, não era necessário guião nenhum. De facto, só quem pretende construir alguma coisa precisa de um guia que indique o caminho; como é sabido, para destruir não são necessárias instruções. Um pouco como quando construímos um lego. Apenas com instruções as peças fazem sentido e somos capazes de visualizar o resultado final, mas quem tenha visto uma criança a desmanchar um lego sabe bem que, nessa altura, o manual de instruções é desnecessário.
Foi isso mesmo que se fez nos últimos dois anos. Cortes sem critério e total paralisia de setores fundamentais do Estado, nomeadamente da administração central. Com consequências conhecidas: a confiança dos cidadãos no Estado desapareceu e, não menos importante, acelerou-se como nunca o processo de degradação do saber instalado na administração pública. Com um Estado deslegitimado e descapitalizado, ficámos todos mais frágeis.
Mas se um lego destruído é, desde que tenhamos o guião certo, reconstruível, já a confiança e a capacidade institucional são irrecuperáveis. Uma vez destruídas, torna-se muito difícil reconstruí-las.
E assim chegámos ao segundo momento. Entre a indigência intelectual e política que marcam o guião apresentado por Paulo Portas (que provoca vergonha alheia), emerge uma ideia paradoxal. O mesmo Governo que prometeu combater o Estado paralelo tem como objetivo criar um universo de mercados, dependentes do Orçamento de Estado, que passaria a prestar serviços até aqui assegurados pelo Estado.
Estamos perante uma proposta de reforma que visa, de facto, fazer crescer exponencialmente o Estado paralelo. Da saúde à educação, passando pela segurança social, a ideia é sempre a mesma: contratualização de serviços públicos com privados, assegurando o financiamento público de negócios privados.
Esse Estado paralelo já existe hoje em Portugal e o que o caracteriza é a pouca transparência e a ausência de regulação e escrutínio. Sabemos que, nas funções sociais, todos os anos são transferidos do Estado para entidades (para) privadas milhões de euros. Mas sabemos pouco sobre a eficiência com que os recursos são aplicados, o controlo das contas é menor do que na administração pública e a gestão dos recursos humanos assenta em princípios demasiado flexíveis.
Para início de conversa em torno da reforma do Estado, talvez valesse a pena fazer uma avaliação rigorosa do que se passa neste Estado paralelo - formado por escolas, creches, lares e hospitais geridos privadamente mas financiados por recursos públicos. Mas pedir estudo, avaliação e rigor a este Governo é, objectivamente, exigir de mais.