03 agosto 2014

Risco moral

Pedro Adão e Silva
Expresso, 2 de Agosto de 2014

Não passa uma semana sem que se ouça alguém argumentar que a generosidade do Estado social comporta um risco moral, na medida em que dá incentivos perversos aos seus beneficiários. Os pobres encostam-se ao rendimento mínimo e os desempregados ao subsídio de desemprego, alimentando uma cultura de dependência com efeitos perversos para o conjunto da sociedade.
Curiosamente, os mesmos que se apressam a falar de risco moral associado ao Estado social não aplicam a mesma bitola ao comportamento de banqueiros. É sintomático e vale a pena colocar a questão em perspetiva. Portugal gasta hoje, por ano, com o RSI, perto de 300 milhões de euros, que servem para atenuar a pobreza de quase 250 mil portugueses; já com o subsídio de desemprego gastamos 2 mil milhões de euros, para cerca de 300 mil beneficiários. Agora comparem com o que temos tido de pagar para compensar os comportamentos moralmente inaceitáveis de muitos banqueiros. E, com o que se vai sabendo do universo BES, o futuro anuncia-se, a este propósito, muito sombrio.
Reparem, já passaram seis anos desde o deflagrar da crise e não passa uma semana sem que sejamos confrontados com um novo escândalo no sistema financeiro. É verdade que as personagens vão mudando, assim como a artimanha: por vezes é o tipico esquema Ponzi, com o caso Madoff, outras é a manipulação das taxas de juro, como foi feito por um consórcio bancário com a Libor; ou, para ficarmos por Portugal, a criação de veículos para autofinanciamento, o BCP; ou, ainda por cá, casos extremos, de associação criminosa, de que o BPN é exemplo de manual.
É um facto que seis anos passados do início da crise financeira e mesmo após várias tentativas para reformar o sistema, os escândalos bancários sucedem-se. A questão fundamental é que ainda não temos uma explicação cabal que nos permita perceber este padrão. Há, contudo, boas razões para acreditar que a explicação para os escândalos é bem profunda e não resulta apenas da ação de uns quantos banqueiros, mas, sim, dos incentivos dados por uma cultura institucional que promove comportamentos moralmente inaceitáveis.
O verdadeiro risco sistémico está no quadro organizacional e de regulação do sistema bancário. A combinação de opacidade na forma como os bancos se organizam e financiam e a complexidade dos seus modelos de governação, multinacionais e assentes em offshores articulados com paraísos fiscais (por exemplo, o Luxemburgo, que até deu um Presidente à Comissão), condena a ação dos reguladores ao fracasso. O que revela que, enquanto andámos entretidos na Europa a promover as miríficas reformas estruturais, que iriam devolver a competitividade às economias, ou a restaurar os Estados sociais, fomo-nos esquecendo onde estava o epicentro da crise. No sistema financeiro.